Allyn Howlett e a descoberta do receptor CB1: a porta de entrada para o Sistema Endocanabinoide

Graças à liberação de estudos da Pfizer nos anos 90, a neurofarmacologista explica os caminhos da pesquisa que mudou o futuro da planta

Publicada em 17/09/2024

background
Compartilhe:

Por João Negromonte

A descoberta do receptor canabinoide CB1 pela neurofarmacologista Allyn Howlett, no início dos anos 90, foi um marco na ciência que abriu portas para a compreensão do Sistema Endocanabinoide (SEC), uma rede biológica que regula funções essenciais no corpo humano, como o humor, o apetite, a memória e a dor. Esta revelação não só impulsionou uma série de estudos sobre os efeitos dos derivados da cannabis no organismo, como também lançou as bases para o desenvolvimento da medicina moderna.

 

IMG_3861.jpg
Durante o evento CbCann, realizado em São Paulo no último sábado, 14 de setembro, Howlett, que também é uma renomada pesquisadora, relembrou os bastidores dessa descoberta histórica. | Foto: João Negromonte

 

A pesquisadora explicou que, na época, a farmacêutica Pfizer já conduzia pesquisas intensivas sobre canabinoides, visando a entrada no mercado com esses compostos. Contudo, a empresa decidiu priorizar os opioides, um segmento que prometia maior retorno comercial. Como resultado, os estudos envolvendo os canabinoides foram disponibilizados para pesquisadores acadêmicos. Foi com base nesses estudos que Howlett identificou o receptor CB1, localizado principalmente no cérebro e responsável por mediar os efeitos psicoativos do THC, um dos pricipais compostos da planta.

"Sem o acesso às pesquisas da Pfizer, eu não teria descoberto o receptor CB1. Eles optaram por investir em opioides, mas isso abriu uma oportunidade para ciência acadêmica avançar no estudo dos canabinoides", explicou Howlett durante sua participação no evento.

A Importância do Sistema Endocanabinoide e a Necessidade de Educação

 

A descoberta do receptor CB1 foi a peça-chave que levou os cientistas a investigar um sistema biológico inteiramente novo, chamado de Sistema Endocanabinoide. Esse sistema, composto por receptores como o CB1 e o CB2, endocanabinoides produzidos pelo próprio corpo (endocanabinoides) e enzimas responsáveis pela sua degradação, está envolvido na regulação de uma ampla gama de processos fisiológicos e cognitivos. O papel dos canabinoides externos (fitocanabinoides), como o THC e o CBD, passou a ser analisado com maior precisão, o que possibilitou o desenvolvimento de medicamentos à base de cannabis para tratar desde condições neurológicas até inflamações crônicas.

Apesar dos avanços, Howlett destacou um desafio persistente que a falta de inclusão do Sistema Endocanabinoide nos currículos médicos. "Hoje já temos produtos à base de cannabis voltados para condições específicas, como a epilepsia refratária, mas o ensino sobre o SEC nas universidades ainda é muito limitado", disse a pesquisadora. Ela acredita que essa situação só mudará quando o mercado de produtos derivados da cannabis se expandir. "O setor precisa trazer mais opções terapêuticas, o que forçará as instituições de ensino a abordarem o tema com mais seriedade", completou.

O Futuro da Medicina Canabinoide

 

Quanto ao futuro da medicina canabinoide, Howlett tem uma visão clara. A especialista acredita que o foco da ciência médica deve se expandir além das moléculas isoladas, como o THC ou o CBD, e explorar as combinações de diferentes fitocanabinoides. Segundo ela, o grande potencial terapêutico da cannabis reside na interação entre esses compostos, permitindo um tratamento mais eficaz das doenças em si, e não apenas de seus sintomas.

"Hoje estamos muito focados em isolar moléculas, mas o verdadeiro avanço estará em encontrar a combinação ideal de fitocanabinoides para tratar a patologia como um todo, e não apenas os sintomas. Essa é a direção que acredito ser o futuro da medicina canabinoide", afirmou Howlett.

A descoberta do receptor CB1 não apenas revolucionou a compreensão dos efeitos da cannabis no corpo humano, mas também abriu portas para novos tratamentos médicos. Com o avanço da ciência e o aumento da aceitação dos produtos canabinoides no mercado, o Sistema Endocanabinoide se mostra uma peça essencial no futuro da medicina. Como Howlett destacou, o desafio agora é expandir esse conhecimento para médicos e profissionais de saúde, enquanto a ciência continua a desvendar todo o potencial terapêutico da planta.