Vício em drogas: uma doença cerebral crônica, não uma questão de escolha

Especialistas apontam que a dependência química está relacionada a alterações cerebrais, e não à simples exposição a substâncias

Publicada em 11/09/2024

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Por João Negromonte

Desde os anos 1990, a ciência tem reforçado a visão de que o vício em drogas deve ser tratado como uma doença crônica do cérebro, uma condição em que o órgão se adapta ao uso contínuo de substâncias, criando um ciclo de dependência. Segundo o psicólogo e especialista em saúde pública Bruno Ramos Gomes, com 12 anos de experiência na cracolândia, em São Paulo, essa percepção é crucial para uma abordagem mais eficaz na redução de danos.

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Bruno Ramos Gomes é autor do livro "Iboga e Ibogaína no Brasil: Uso contemporâneo de uma planta ancestral" | Foto: Arquivo

“Como qualquer atividade repetida, o cérebro acaba se acostumando, o que causa a dependência em determinada ação ou substância”, explica. O especialista, que também estudou o uso de cetamina e ibogaína no tratamento de dependências, aponta que essas substâncias psicodélicas, quando administradas em dosagens controladas, têm o potencial de interromper os gatilhos neurais que mantêm o ciclo vicioso.

"Esses compostos tem a capacidade de estimular a produção de novos neurônios e receptores serotoninérgicos, desmontando caminhos cerebrais enrijecidos que causam o transtorno por uso de substâncias", revela Gomes.

A visão de Gomes reflete uma mudança significativa na forma como a dependência química é tratada. Ele defende que os tratamentos convencionais não demonstram a eficácia necessária para controlar a doença e que novas alternativas, como o uso de psicodélicos, têm sido promissoras.

Já o médico psiquiatra Dr. Wilson Lessa, especialista em terapias com cannabis, também aponta para a importância do sistema endocanabinoide (SEC) na dependência química. Ele cita estudos como o do pesquisador espanhol Jorge Manzanares, de 2018, que propõem que o SEC desempenha um papel crucial nas áreas do cérebro associadas ao vício. Segundo Lessa, "os receptores canabinoides CB1, amplamente presentes nas áreas do cérebro envolvidas no consumo e compulsão por drogas, podem ser uma 'peça-chave' neste contexto".

Lessa explica que, embora a pesquisa sobre antagonistas dos receptores CB1 tenha sido promissora inicialmente, houve uma retirada de algumas substâncias do mercado devido a efeitos adversos psiquiátricos graves. No entanto, novas abordagens estão sendo desenvolvidas, focadas em moduladores alostéricos e em receptores CB2, com potencial de atuação na redução da dependência sem os mesmos riscos de efeitos colaterais.

“O alvo no sistema endocanabinoide pode tanto diminuir os efeitos de recompensa das substâncias quanto reduzir sintomas de abstinência e fissura, criando uma oportunidade promissora de pesquisa e tratamento”, explica o psiquiatra.

Essa nova perspectiva sobre o vício, que vai além da substância em si e considera a complexa interação do cérebro com fatores genéticos e ambientais, está moldando novas terapias. Os avanços nas pesquisas com psicodélicos e cannabis sugerem que, em ambientes controlados e com dosagens adequadas, essas substâncias podem ser aliadas poderosas no combate à dependência, oferecendo esperanças para um tratamento mais eficaz e humanizado.

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