Inspiração para o Brasil: João Goulão revela os segredos de uma política pública que prioriza a saúde e a dignidade do usuário
A experiência portuguesa de descriminalização e cuidado é estudada por comitiva brasileira e pode ser o pontapé inicial para uma nova política de drogas no país
Publicada em 05/02/2025
Com o objetivo de conhecer melhor as políticas de atenção e cuidado aos usuários de drogas empregadas no restante do mundo, o Ministério da Justiça conduziu, na última semana de janeiro, uma missão internacional a Portugal.
Em 2000, o país europeu deixou de criminalizar o uso de drogas, passando a considerar a porta de matéria psicoativa como ilícito administrativo.
A comitiva visitou o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), liderado pelo médico e idealizador da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga (ENLCD) de Portugal, João Castel-Branco Goulão.
Dias antes de receber a comitiva brasileira, Goulão concedeu uma entrevista ao Portal Sechat. Durante o diálogo, o médico falou sobre a descriminalização em Portugal, as perspectivas para a política de drogas no Brasil. Também comentou como foi sua passagem no Brasil, em novembro no ano passando, tema inicial da conversa:
Senti, desde o início, grande curiosidade e abertura para entender o modelo que adotamos em Portugal há muitos anos. O convite para ir ao Brasil surgiu, primeiramente, num encontro em Lisboa, com o ministro Ricardo Lewandowski e, posteriormente, com o ministro Gilmar Mendes. Tive a oportunidade de discutir com ambos, e ambos demonstraram interesse em levar nossa experiência ao Brasil.
Não é de agora que mantínhamos um diálogo próximo e visitas mútuas. Por questões de orientação política, esse contato se atrasou por algum tempo, mas felizmente estamos agora reaproximando e compartilhando experiências e vontades.
– O interesse demonstrado pelo Brasil reflete também um descontentamento com a política de segurança pública vigente?
Eu penso que ficou clara a busca por uma capacidade de resposta das áreas da saúde e sociais aos problemas relacionados às drogas, em vez de se apoiar apenas na repressão à oferta e no combate ao tráfico. Essa foi, inclusive, a intenção das autoridades com quem conversai. É preciso diferenciar o uso problemático de outras atividades criminosas.
Em Portugal defendemos uma política equilibrada entre a repressão da oferta – que é de competência das forças policiais e aduaneiras – e a repressão da procura, que cabe à saúde e à área social. Essa abordagem, nos traz na proteção dos usuários e em auxiliá-los a melhorar seu estilo e condições de vida, parece ter encontrado sintonia com as autoridades brasileiras.
– Como foi pensada e implementada a descriminalização das drogas em Portugal?
Em Portugal, decidimos descriminalizar o uso e o porte para uso pessoal de todas as substâncias. Na época, mesmo a cannabis sendo a droga ilícita mais consumida, a heroína era a substância mais problemática, tendo encontrado uma verdadeira epidemia, portanto, o porte de heroína – até uma determinada quantidade considerada adequada para o uso pessoal por 10 dias – deixou de ser crime, embora seja punido administrativamente, sem implicar em registro criminal, diferentemente do que acontece no sistema penal.
Essa sanção é parecida com uma multa de trânsito: não há registro criminal, mas há penalizações que podem incluir multas ou outras medidas educativas. Isso facilita a aproximação dos usuários às estruturas de saúde, já que não há temor de consequências penais.
– Foi um erro o Brasil descriminalizar apenas a cannabis?
É melhor descriminalizar a maconha do que não descriminalizar nada. Trata-se de um primeiro passo, um balão de ensaio que pode ser testado na sociedade brasileira. Eu seria favorável a uma descriminalização mais abrangente das substâncias controladas, pois até o crack poderia se beneficiar de medidas semelhantes. Mas, certamente, é melhor iniciar com a maconha do que permanecer sem qualquer mudança.
– Foram feitos estudos ou relatórios para saber quem são os usuários e por que usam drogas?
Essa postura foi construída pela nossa comunidade profissional, que se dedica a esses temas. Não existe uma base científica única, mas um modelo de intervenção desenvolvido e transmitido entre várias gerações de profissionais da área das drogas.
E isso foi incorporado na sociedade portuguesa, mudando a percepção social e a abordagem política, com grande apoio social e combate ao estigma. As políticas não foram direcionadas àquelas que são diferentes de nós, mas sim aos nossos filhos, aos nossos sobrinhos, aos nossos vizinhos.
Isso assentou na percepção de que os usuários não são bandidas, não são marginais por natureza, mas sim as situações, em alguns casos, as empurraram para um uso problemático de drogas.
Nosso sistema de respostas foi estruturado para diferenciar o uso problemático da atividade criminosa relacionada ao tráfico, direcionando o tratamento para os problemas de saúde e sociais decorrentes do uso. Desde a década de 1990, adotamos uma abordagem forte e voltada à reabilitação dos usuários.
– As drogas são sempre a principal questão enfrentada pelos usuários, ou outros fatores também pesam?
Em uma interação com profissionais de saúde, podem surgir outros temas de caráter social ou psicológico. Muitas vezes, os problemas enfrentados pelos usuários não se limitam ao uso de drogas, mas envolvem questões familiares, dificuldades financeiras ou desafios pessoais.
– Sobre os cuidados: uma intervenção em saúde é suficiente para auxiliar os usuários e aproximá-los do tratamento?
Eu penso que, em qualquer circunstância, uma intervenção de saúde é fundamental, permitindo uma assistência mais humana e eficaz. Dessa forma, ganhamos a confiança dos usuários e ganhamos de maneira mais aberta, sem posturas agressivas ou de negação do seu estilo de vida.
Nesse sentido, penso que é fundamental existir uma organização de serviços de saúde que permite dar resposta a quem nos procura, e quando não procura, temos uma série de estratégias de busca ativa, nos aproximando das pessoas que não se mobilizamos espontaneamente para procurar ajuda.
Considerando as dimensões e a complexidade político-administrativa do Brasil – é fundamental ter um espaço como os daqui. A instalação de centros de resposta integrados, que fazem a ponte com o suporte social e oferecem respostas de saúde e tratamento para a dependência, é um passo importante.
Espaços de consumo protegidos, também, onde as pessoas podem fazer uso das substâncias em condições de salubridade, de higiene, que muitas vezes não são fornecidas quando estão em situações de precariedade habitacional, também são boas ferramentas.
Em Portugal, nossa rede de cuidados de saúde para usuários foi desenvolvida antes da decisão de descriminalização, mas é necessário criar condições mínimas para essas pessoas num novo enquadramento, com diferentes.
– Como a descriminalização impactou o sistema carcerário e o tratamento dos usuários de cannabis em Portugal?
Os números da população carcerária diminuíram significativamente após a descriminalização. Atualmente, uma pessoa interceptada pela polícia com pequenas quantidades de droga é encaminhada para uma comissão de dissuasão da toxicodependência, onde é avaliada quanto à sua condição - se é dependente ou um usuário ocasional.
No caso dos dependentes, é feito um convite para adesão ao tratamento, sem obrigatoriedade. Se uma pessoa optar por não participar, ela é informada de que a escolha é sua, mas que, em caso de reincidência, poderá haver análises, como multas para não-dependentes.
Para muitos usuários, especialmente aqueles que consomem maconha de forma moderada e controlada, o uso não traz grandes prejuízos à saúde. Então evitamos a imposição de regras moralistas, permitindo que cada pessoa faça suas escolhas sem o estigma de um registro criminal.
– No final do ano passado, Portugal tornou-se o segundo maior exportador de produtos de cannabis medicinal. Esse fato está relacionado com a descriminalização e o trabalho de cuidado realizado?
Não. Francamente, acredito que sejam temas relativamente independentes. Os produtos de cannabis para fins medicinais são produzidos sob um circuito controlado pelo Estado Português e regulamentado pelo Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P, órgão equivalente à Anvisa no Brasil.
Essa produção não interfere no trabalho do ICAD, que se dedica aos comportamentos aditivos e dependências. Agora, a abertura do próprio Estado português para a admissão deste novo arquivo econômica, mas com fins medicinais, é resultado também de uma postura, de um entendimento avançado do que estas substâncias são.
– Quanto tempo levou para Portugal “colher os frutos” da descriminalização?
Os resultados começaram a ser sentidos algum tempo após a mudança. Instrumentos de medição, como inquéritos à população, não mostram mudanças imediatas, contudo, observamos uma resposta sensível, por exemplo, na redução dos casos de infecção pelo HIV, graças às políticas de redução de danos, troca de seringas e administração controlada de metadona.
Quando a descriminalização foi aprovada – em 2000 – já em 2003 e 2004 percebemos impactos, como a redução das mortes por overdose, que passaram de uma mídia de 350 para cerca de 70 por ano.
Também houve uma mudança na percepção social: enquanto em 1997 a droga era a maior preocupação dos portugueses, por volta de 2007-2008 essa preocupação caiu para o 13º lugar, sendo deixada por outras questões, como pobreza e custo de vida. fonte psicoativa, estamos preparado para oferecer nossos préstimos à sociedade portuguesa nesse campo.