Bhang e a planta sagrada
Como a cannabis foi utilizada pelo lorde Shiva para salvar a humanidade e a sua divindade na Índia
Reconhecidamente originária da região conhecida como Indo-China, a Cannabis foi um presente dos Deuses hindus ou foi um presente para os Deuses?
A Índia representa povos e uma terra culturalmente e religiosamente heterogênea, um caldeirão de histórias e tradições que orbitam em torno do divino. Essas histórias penetraram profundamente na sociedade cotidiana, moldando costumes e tradições de maneiras sutis, mas poderosas. Os Deuses e heróis são tão influentes que todos aspiram a emular suas virtudes.
Quando se trata de rituais influenciados pela mitologia antiga hindu, um se destaca por sua jornada excepcional, o uso da Cannabis ritualística para conexão espiritual, meditação, alimento e cura. Este arbusto verde e frondoso, encontrado nas encostas frias do Himalaia, tem suas raízes especialmente entrelaçadas com as histórias de dois Deuses, Shiva e Krishna. A conexão entre Shiva e a Cannabis é tão profunda que a planta se tornou sinônimo da divindade.
A história desta planta antiga remonta há mais de 2000 a.c., destacando-se o grande evento conhecido como Samudra Manthan, ou "a agitação dos oceanos". De acordo com uma lenda amplamente difundida, durante essa agitação cósmica, os deuses buscavam o Amrit, o elixir da imortalidade. Como subproduto desse tumulto, o veneno Halahala foi criado, uma substância tão poderosa que ameaçava a existência de todas as formas de vida. Para evitar a catástrofe, Shiva interveio e ingeriu o veneno, livrando o mundo de sua malignidade. O veneno tingiu sua garganta de azul, conferindo-lhe o título de Neelkanth e para aliviar o sofrimento causado pelo veneno, uma mistura de leite, especiarias, folhas e flores de Cannabis foi oferecida a Shiva.
Essa lenda marca a origem da relação entre Shiva e a Cannabis.
Após salvar Shiva do veneno, a Cannabis passou a ser reconhecida como uma planta com propriedades curativas. Utilizada para melhorar a função cerebral e reduzir a inflamação, era frequentemente usada pelos antigos hindus para aliviar dores, acalmar o corpo, a mente e as emoções.
Muitos rituais festivos envolvem o consumo de alimentos à base de Cannabis, como o bhang ou thandai, uma preparação de leite doce de Cannabis, consumida em festivais como Mahashivratri e Holi, oferecidos como refrescos para os celebrantes sob o calor do sol escaldante.
Outra história popular destaca o papel da Cannabis na vida doméstica dos deuses Shiva e Parvati. Após uma discussão, Shiva deixou sua morada e buscou refúgio entre árvores. Exausto e faminto após a discussão, ele adormeceu entre as folhas. Ao acordar, a Cannabis veio em seu auxílio, proporcionando-lhe alívio e rejuvenescimento, melhorando seu humor. Esse evento solidificou a importância da Cannabis na vida de Shiva.
Na mitologia hindu, uma lenda fascinante conecta o deus Krishna à cannabis. Krishna, conhecido por suas brincadeiras e sua natureza amorosa, frequentemente desfrutava de momentos de diversão com as gopis, as pastoras de sua comunidade.
Essa bebida, conhecida por seus efeitos psicoativos, elevava a alegria e a espiritualidade dos participantes, criando um estado de êxtase e conexão com o divino. Sob a força da cannabis, Krishna e as gopis dançavam e cantavam em êxtase, experimentando uma união profunda com o universo e entre si.
Embora suas origens remontem a lendas antigas, os benefícios da Cannabis foram amplamente documentados em textos védicos. No Atharva Veda, a Cannabis é mencionada como uma das cinco ervas que podem ajudar a criar o “Soma”, um elixir para imortalidade e saúde.
Na Índia, várias religiões e seitas fazem uso da cannabis em práticas religiosas e espirituais:
1. Hinduísmo: Várias seitas e grupos, como os sadhus e os seguidores de Shiva, consomem cannabis como parte de seus rituais religiosos. Eles acreditam que o consumo da planta ajuda na busca espiritual, meditação e conexão com o divino.
2. Sikhismo: Algumas seitas dentro do sikhismo, como os Nihangs, têm uma tradição de consumir cannabis, que chamam de "sukha", como parte de seus rituais e práticas religiosas. Eles acreditam que o uso da planta ajuda na devoção e na luta espiritual.
3. Aghori: Os Aghoris são uma seita ascética dentro do hinduísmo que segue uma abordagem extremamente austera e iconoclasta. Eles são conhecidos por seu uso ritualístico de substâncias como a cannabis, acreditando que ela tem poderes espirituais e pode ajudar na transcendência da dualidade.
É importante observar que o uso da cannabis nessas religiões, é, em vasta maioria, ritualístico e não significa que os praticantes utilizam a cannabis para uso adulto. Além disso, enquanto o uso religioso da cannabis é tolerado em algumas regiões da Índia, sua legalidade varia e está sujeita a regulamentações governamentais que nem sempre estão alinhadas a práticas ancestrais.
Neste sentido, ao longo dos séculos, o uso da cannabis na Índia enfrentou mudanças significativas, especialmente durante o período colonial. Com a influência das políticas britânicas, houve tentativas de restringir e controlar o uso da cannabis, seja por preconceito ou pela tentativa de imposição de uma cultura imperialista.
No presente, a cannabis continua a ser uma parte integrante da cultura indiana, embora sua legalidade e uso sejam objeto de debate e regulamentação. A Índia é o lar de uma das maiores indústrias de cannabis do mundo, com o seu cultivo sendo legal para fins industriais e medicinais em alguns estados.
Assim, o uso da cannabis na Índia reflete uma interação complexa entre mitologia, religião, tradição, história, política e mudança social. Enquanto seu uso continua a evoluir e se adaptar aos tempos modernos, a cannabis continua a ocupar um lugar único na cultura e na sociedade indiana, tanto no passado quanto no presente.
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